
Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à toda-generosa Sedna, em segurança, afinal.Imagine quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela - aquilo - jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro,um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza. Bem devagar, ele estendeu as mãos e, falando baixinho como uma mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar. Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos. Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-Esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano. Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando, enquanto passava óleo na preciosa madeira de sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra - não tinha coragem - para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos. O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar dos olhos de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.
A Mulher-Esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo, e de repente ela sentiu sede. Aproximou-se do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima.
Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos. Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm!... Bom, Bomm!... E enquanto ela marcava o ritmo, começou a cantar em voz alta. E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelos, olhos saudáveis e mãos macias e gordas. Ela cantou para reaver seu dom de ser mulher e ter seios suficientes para dar calor. Ela cantou para ter sabedoria, para reaprender a amar, para ser inteira, íntegra e verdadeira. Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama de peles com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor - o coração -, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados na noite, juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro. As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça, dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d'água. As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem..."
Extraído do livro "Mulheres que Correm com os Lobos", de Clarissa P. Estés.
Obs.: nesta lenda, podemos fazer uma analogia da figura do pescador com a jornada de nosso ego na (re)descoberta da alma.
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